Ainda estamos aqui
- Ju Barreto
- 27 de nov. de 2024
- 6 min de leitura

Família Rubens Paiva na década de 60 (Imagem: Arquivo/Família Paiva)
Na semana do dia 7 de novembro, milhares de brasileiros saíram de suas casas rumo ao cinema para ver o novo filme de Fernanda Torres. Alguns foram por conta da atriz, outros pela promessa de um possível Oscar brasileiro. Já uns saíram para se reencontrar com o passado. “Ainda estou aqui” é um recorte temporal de uma família de classe média durante o ápice da Ditadura Militar nos anos 70. O que não parece ser de conhecimento geral é que o longa é baseado no ilustre livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva — jornalista e escritor — , filho do ex-deputado e engenheiro Rubens Paiva, morto pelo regime militar.
Diferentemente do filme, que segue uma ordem cronológica, o livro “Ainda estou aqui” traz mais detalhes de forma intimista. Marcelo nos conta a história de sua família, de seu passado e de nosso país. Logo no início, o autor deixa claro:
A família Rubens Paiva não é a vítima da ditadura, o país que é.
Será que os jovens de hoje têm alguma noção do que foi a Ditadura Militar? Eu sei que eu não tenho. Ainda que tenhamos empatia, nunca viveremos na pele (espero) as dores de um regime de tortura e de censura, amplamente legitimado por milhões de nós mesmos. Acredito que toda forma de arte é uma forma de sensibilização. Entretanto, no mundo das imagens somos telespectadores, enquanto no mundo das palavras somos coniventes. O filme nos mostra imagens agradáveis da vida da classe média na década de 70 para logo em seguida contrapor com os horrores vividos por aqueles que foram afetados pela violência. Já no livro, Marcelo nos conta sua verdade de forma simples, como se relatasse os fatos a um amigo.
Primeiro, conhecemos Eunice Paiva. Mesmo que muito bem interpretada por Fernanda Torres, acredito muito mais na Eunice de Marcelo, seu filho. A mulher forte que foge das raízes italianas. Que se mantém na dicotomia entre ser uma dona de casa e uma mulher que gosta de estudar e de trabalhar. Que é tanto uma mãe ausente emocionalmente, perdida em seu próprio mar de pensamentos, quanto uma guerreira que protege sua prole dos “gorilas” (forma carinhosa que Rubens Paiva utilizava para se referir aos militares). Essa Eunice Paiva parece mais real. E ela se mantém viva nas páginas de Marcelo em “Ainda estou aqui”.
Marcelo Rubens Paiva parece escrever em um tempo onírico. O que faz total sentido, já que era uma criança quando seu pai, sua mãe e sua segunda irmã mais velha foram levados para o DOI-Codi na Rua Barão de Mesquita, Tijuca, em 1971. Como confiar nas memórias de uma criança? Na verdade, o autor contrapõe: como confiar nas memórias de qualquer um? Sua mãe advogou até os 77 anos, quando teve que ser afastada por conta do Alzheimer. Até as mentes mais afiadas não são confiáveis, pois estamos todos suscetíveis ao tempo e às doenças. A maior parte de nossa memória é reforçada por fotos, vídeos, coisas que nos disseram e coisas que dizemos aos outros. Mas a cada vez que acessamos uma recordação a alteramos de alguma forma.

“Ainda estou aqui” de Marcelo Rubens Paiva publicado pela Editora Alfaguara em 2015
Marcelo lembra das férias no sítio de sua família. Ele sabe das suas raízes e quais primos e tios via todo final de ano nas festas da família. Marcelo lembra de estar dormindo no dia 20 de janeiro (feriado no Rio de Janeiro por conta de São Sebastião, padroeiro da cidade) e acredita que lembra dos eventos que se sucederam. Mas não teria como, se estava dormindo. Homens entraram em sua casa, no Leblon, e levaram seu pai para um depoimento “de rotina”. Marcelo lembra de não achar os homens assustadores, mas talvez seja só porque sua mente de 11 anos não entendesse realmente o que se passava.
No dia seguinte, levaram sua mãe e sua irmã de 15 anos. Eunice Paiva passou 12 dias presa. Como Marcelo poderia falar sobre sua experiência? Sim, ela pode ter relatado nos mínimos detalhes aos filhos, à imprensa e a quem mais seja tudo o que se passou. Mas nunca saberemos realmente o que esta mulher viveu. O filme tenta contar um pouco mais sobre o seu sufoco. Já Marcelo, no livro, reconhece a própria incapacidade. Ainda assim, traz relatos de suas irmãs — Veroca, Eliana, Ana Lúcia e Beatriz — , manchetes de jornais, confissões de conhecidos e pequenas pistas deixadas por sua mãe ao longo dos anos.
O livro “Ainda estou aqui” é um complemento muito bem-vindo para aqueles que assistiram ao filme e querem entender melhor a história de Rubens Paiva e de sua família — uma entre as milhares que foram afetadas pela Ditadura Militar. Pelos olhos de um menino, e depois de um homem, as gerações contemporâneas podem conhecer um Brasil horripilante, que se esconde até hoje em nossas ruas. O corpo de Rubens Paiva nunca foi encontrado e seus torturadores nunca foram punidos. Mesmo com diversas testemunhas, contando detalhes assustadores e específicos — como terem ouvido as músicas “Jesus Cristo”, de Roberto Carlos, e “Apesar de você”, de Chico Buarque, misturadas com os gritos de “Eu não sei nada” de Rubens Paiva ecoando pelas paredes do DOI-Codi —, ninguém foi acusado, nem punido pelos crimes realizados a mando do coronel João Paulo Moreira Burnier. “Aqui é uma guerra”, ele diz. Os militares estavam apenas cumprindo ordens.
A tática de desaparecimento político é a mais cruel de todas, pois a vítima permanece viva no dia a dia. Mata-se a vítima e condena-se toda a família a uma tortura psicológica eterna. Fazemos caras de fortes, dizemos que a vida continua, mas não podemos deixar de conviver com esse sentimento de injustiça. — Eunice Paiva (1985)
Lembrar para não esquecer. Lembrar para não se repetir.
Além disso, o livro traz o olhar de um filho sobre a sua mãe. E uma mensagem:
Grandes gestos são humildemente casuais. Tenho um agradecimento a fazer aos militares brasileiros: obrigado por não terem matado a minha mãe.
Se você se apaixonou pela Eunice Paiva de Fernanda Torres, se surpreenderá com essa mulher real. Mãe, ativista, guerreira e, mais tarde, advogada. Voltou a estudar aos 40 e poucos anos para lutar por justiça pelo seu marido e por seu país. Sorria nos jornais, desafiando o regime a derrotá-la. Em 1996, 25 anos depois do depoimento de rotina, finalmente conseguiu a certidão de óbito de seu marido, que até então estava “desaparecido”. Sua luta durou anos e não acaba nunca. A luta continua. Já que a tortura e o desaparecimento são as piores (e melhores) armas de um regime autocrático, a família nunca teve a chance de se despedir de forma apropriada. E, sempre importante lembrar, Marcelo Rubens Paiva só teve acesso a muitos dados relatados em seu livro por conta da Comissão da Verdade criada em 2011 durante o governo Dilma Rouseff. Um pequeno respiro em anos de injustiça.
Histórias que parecem longe de nós, escritas em livros, passadas nas telonas, mas que são reais. Este ano, faz apenas 60 anos desde o Golpe Militar. Seus bisavós, seus avós, seus pais e até mesmo alguns de vocês estavam lá. Talvez tenham existido (e sempre vão existir) dois Brasis. Um que vive segundo o sistema e outro que luta contra as incongruências dele. Em alguns anos, as coisas parecem melhores, mas “Ainda estou aqui” nos lembra que há muito a ser resolvido.
Quando acabei o livro, me perguntei: “O que faziam meus avós no dia em que Rubens Paiva foi preso? Aproveitavam o feriado? Era um dia de sol, estariam na praia do Leblon, posto 11, em frente à casa dos Paiva? Será que eram coniventes ao regime?”. Meu avô é engenheiro, assim como Rubens Paiva. Será que se conheciam? Será que minha avó distribuía cartas para famílias exiladas apenas para dar algum conforto como fazia o ex-deputado? Será que poderiam ter sido pegos também se não tivessem sido cuidadosos? Ou será que não, na verdade apoiavam a Ditadura? São conversas que não temos em casa. E, talvez, esteja na hora de termos. Se você quer conhecer o passado, o seu, o do país e o do povo, pergunte. Marcelo Rubens Paiva fez sua parte, nos contando sua história, história de sua família, história de Eunice. Talvez seja a nossa vez de desvendarmos os mistérios enterrados pelo regime autoritário em nossas próprias famílias, das mulheres que continuaram aqui.
Na terceira semana de novembro (21/11), “Ainda estou aqui” de Marcelo Rubens Paiva foi o livro mais vendido na Amazon Brasil. Ironicamente, na mesma semana, a Polícia Federal entregou para o Supremo Tribunal Federal o inquérito que investigava a tentativa de golpe de Estado em 2022. Dentro do grupo de 37 indiciados, se encontra o ex-presidente Jair Bolsonaro e 25 militares – o que nos faz questionar: será que estamos a salvo de uma possível nova Ditadura Militar?
Espero🙌 salvos!!! Texto inteiro reflexão.