Mulheres enfrentam barreiras para chegar à política
- Tainá Junqueira
- 27 de set. de 2024
- 9 min de leitura
Eleições municipais de 2024 apresentam sub representação feminina em número de candidatas, fruto de estrutura de desigualdades

Apenas 20% das candidaturas para prefeituras são femininas em 2024/ Foto: reprodução internet
Em apenas quatro anos de seu primeiro mandato, Duda Hidalgo (PT) soma 12 processos judiciais, entre pedidos de cassação e processos movidos contra ameaças, perseguições e violências verbais e psicológicas que sofreu. Advogada e primeira vereadora assumidamente bissexual de Ribeirão Preto (SP), Duda conta dos desafios insistentes no ambiente político institucional mesmo depois de eleita: “Nós somos entendidas enquanto corpos estranhos àqueles espaços”. Barreiras que vão desde desigualdade econômica à violência dificultam uma maior presença feminina na política e as eleições municipais de 2024 não parecem ser diferentes.
Mulheres representam apenas 20% das candidaturas para prefeituras em 2024, e, consideradas apenas as capitais, essa porcentagem cai para 15%. Ainda, seis capitais não terão candidatas à prefeitura e em outras sete apenas uma mulher participará da disputa. De acordo com pesquisas de intenção de voto, em apenas três capitais, mulheres lideram pesquisas de intenção de votos. Esse número mostra uma sub-representação de mulheres, grupo que corresponde a 52,7% do eleitorado. Apesar de um crescimento notório em candidaturas e eleições femininas nos últimos pleitos, ainda não há número expressivo de mulheres eleitas. Para candidatas e especialistas, essa disparidade aponta para questões mais profundas.
A cientista política e autora do livro Candidatas, Malu Gatto, conta que a disparidade entre o número de mulheres na população e o número de mulheres nos espaços políticos significa que “existe algo, um processo de seleção de candidatos e de apoio a candidaturas que está enviesando o processo a favor de um grupo em detrimento de outro”. Ou seja, “a sub-representação feminina mostra que tem algo no processo democrático que não está funcionando tão bem”.
Para chegar lá
Para Duda, “o problema é muito maior do que só debater a questão eleitoral”. Falar da participação de mulheres no âmbito público e na política é falar de toda a estrutura que impõe uma realidade. “É muito difícil você virar para uma mulher negra da periferia, mãe de dois filhos, que faz inúmeros bicos, porque o trabalho dela não é o suficiente para remunerar a casa, e dizer que tem que participar de uma audiência pública sobre o orçamento da cidade”, exemplifica. As desigualdades econômicas, de trabalho, racial e social dificultam que mulheres participem de espaços públicos. Duda defende que não é possível falar de maior representatividade feminina na política institucional como ponto isolado. “A ocupação das mulheres na política tem que significar também um rompimento dessa estrutura que as oprime no dia a dia.”

Duda Hidalgo é a primeira vereadora assumidamente bissexual de Ribeirão Preto / Foto: reprodução
O quesito da descredibilidade em candidatas também pesa no eleitorado na hora de votar. Para Maíra do MST, candidata a vereadora do Rio de Janeiro pelo PT, “tem sim esse elemento do machismo, um questionamento das mulheres da forma como elas se portam, se vão sustentar o mandato”. Ela conta que no processo de campanha, falas e atitudes que questionem sua capacidade em estar na política são constantes: “Eu sinto isso de maneira muito mais forte: por que essa jovem menina está ocupando esse espaço? Será que ela vai sustentar? Será que ela não vai sustentar? Ela fala muito fino.” Malu Gatto explica que essa desconfiança em mulheres é uma representação do machismo estrutural que permeia o imaginário popular.
Além disso, fatores mais práticos dificultam o acesso de mulheres nos espaços políticos como a desigualdade econômica, presente desde antes da campanha, na disparidade de salários e até no acesso a fundos eleitorais. Com isso, as candidaturas femininas são diretamente impactadas. “Essa largada, até chegar ao final do jogo, tem muitos processos, e um deles eu acho que está calcado nessa disparidade econômica que acontece quando a eleição já está rolando e acontece dos homens receberem mais”, analisa Maíra. Assim, afeta “a quantidade de mulheres e, por consequência, afetam também a prioridade que é dada para as pautas femininas dentro desses espaços”, comenta Duda.
"A cota de gênero tinha a sua linguagem: a palavra reservar e não preencher" - Malu Gatto
O espaço político institucional ainda é muito masculinizado de forma a parecer “inalcançável, inatingível, que a gente não se sente nem no direito de participar ou de saber o que está acontecendo”, compartilha Duda. Malu Gatto explica que a política, enquanto ambiente de poder, é construída a partir de leis e regras definidas por quem está dentro dela e não quer perder seu espaço. “Os incumbentes são os que fazem as regras do jogo, são eles que legislam, e já tá mais do que provado que eles não legislam contra si mesmos”, conta.
Com isso, criar leis que defendam a maior inserção de mulheres no espaço político “significa retirar homens dos seus assentos”. Assim, as leis propostas e votadas majoritariamente por homens, que já ocupam esses espaços, apresentam brechas. Dessa forma foi desenhada a política de cotas femininas. Inicialmente incluída em 1997 na Lei das Eleições, a norma determinava que os partidos políticos deveriam reservar no mínimo 30% das candidaturas para mulheres. No entanto, apresentava brechas. “A cota de gênero tinha a sua linguagem, a palavra reservar e não preencher, que significa que os partidos apenas tinham que reservar lugares nas suas listas para mulheres, mas não necessariamente nomear mulheres nas suas listas de candidatos”, explica Malu.
A partir de 2010, a norma mudou e o Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) passou a incluir a necessidade de as mulheres preencherem suas vagas, além de punir os partidos que não cumprissem com mínimo de 30% de candidaturas femininas. “A cota, principalmente a partir de 2010, conseguiu aumentar a proporção de mulheres nomeadas”, conta. No entanto, novos desafios apareceram. “Essas candidatas não precisavam ser competitivas. Então, os partidos, de fato, não investiam nessas candidaturas”, esclarece Malu. Ou seja, as campanhas de candidaturas femininas não recebiam o mesmo investimento das masculinas, resultando numa disputa desigual, de candidaturas inviáveis ou mesmo laranjas, sem chances de se eleger. É o que também percebe Maíra: “A gente vê que muitos partidos acabam utilizando essa necessidade legislativa, da legislação eleitoral, mas não impulsionam essas candidaturas para frente”.
Para Duda Hidalgo, as cotas fazem sentido, principalmente considerando a realidade de desigualdade financeira e de fundos, mas ainda têm muitas falhas. Ela defende uma cota para pré-eleitas para garantir a presença de mulheres. “A gente já viu que o sistema de cotas, da forma que ele é hoje dentro da política, não é suficiente para suprir a nossa demanda de ocupação dentro desses espaços. Então, hoje, a gente precisa ocupar mais a política. E a resposta para mim é cotas pré-eleitas”, defende.
Para Malu, o caminho está no fortalecimento das políticas já existentes. “Acho que o caminho institucional é muito importante. Então, fortalecer a cota de gênero, monitoramento da mesma, e também da reserva de financiamento de campanha são as principais formas” de garantir a maior presença de mulheres na política.

Para Maíra, muitos elementos que contribuem para que a política siga masculinizada / Foto: reprodução
De dentro da política
No entanto, os desafios de chegar até os espaços políticos não são os únicos. Os espaços políticos institucionais não foram desenhados pensando nas mulheres. A própria arquitetura mostra a masculinização do espaço. Como exemplo disso, o Senado passou a ter banheiro feminino apenas em 2016, depois de 55 anos de sua construção. Para Duda, isso é reflexo de que “nunca antes se imaginou que uma mulher passaria a ocupar aquele espaço”. Maíra corrobora com a percepção de que historicamente a política foi construída por homens e para homens: “São muitos elementos que se retroalimentam para que a política siga masculinizada”.
Se a jornada para conquistar uma cadeira no legislativo é árdua, para permanecer lá dentro também. “A gente tem que lembrar que esse ambiente é historicamente masculino”, recorda Malu. “É como se as mulheres estivessem entrando num espaço que não foi concebido por elas”. Com isso, é um espaço de reprodução de comportamentos masculinizados e mesmo de hostilidade contra mulheres, em que mesmo as eleitas “estão propensas a sofrerem violências, assédios e também outros tipos de micro e macro-agressões no ambiente político”.
Ao chegar na política institucional a mulher “ integra um espaço de poder e vários desses preconceitos se afloram. Várias dessas desigualdades da sociedade ficam evidenciadas”, conta Duda. Como a primeira vereadora assumidamente LGBT eleita em Ribeirão Preto em 2020, ela fala da importância dessa representatividade em um ambiente ainda muito hegemônico “para que outras pessoas saibam que elas também podem ocupar esses espaços”.
Maíra do MST relembra o assassinato da vereadora Marielle Franco, em 2018, no centro do Rio de Janeiro como símbolo da violência sofrida por mulheres e, sobretudo, mulheres negras no espaço político. “A gente consegue entender a dimensão da misoginia, a dimensão de como essa política masculinizada e violenta afeta diretamente a vida das pessoas”, acrescenta. Por outro lado reconhece o efeito que o assassinato de Marielle causou, as chamadas sementes de Marielle: “A tomada de protagonismo e de consciência coletiva que se cria, em torno de mulheres jovens, que constroem luta há muito tempo, de que a gente precisa fortalecer essa política”, conta.

A vereadora Marielle Franco foi assassinada em 2018, vítima de violência política / Foto: reprodução
Violência política de gênero
O caso Marielle é o extremo da chamada violência política de gênero. Motivado por questões políticas, o crime teve como alvo uma mulher preta e periférica. Antes de chegar ao assassinato, diversas agressões atravessam as vereadoras, prefeitas, deputadas e senadoras cotidianamente. “Existem diversos tipos de violência, e as pessoas a entendem de forma diferente”, lembra Malu. Fazem parte de violência política de gênero, por exemplo, gestos, palavras, ameaças, interrupções sistemáticas da fala de mulheres no ambientes políticos, a exclusão em grupos de trabalho, comissões, lideranças de partidos ou mesmo a desqualificação, questionando seu preparo ou capacidade intelectual.
Apesar de constante, a violência política contra a mulher só foi considerada crime no Brasil em 2021, quando foi sancionada a Lei 14.192. Segundo a legislação, é crime eleitoral assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar candidatas ou mulheres eleitas. De agosto de 2021, quando a lei foi sancionada, até novembro de 2022 foram registrados 7 casos a cada 30 dias no Brasil de esferas executivas e legislativas, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em sua pesquisa para o livro Candidatas, em que ouviu o relato de experiências de centenas de candidatas, Malu entendeu que muitas consideravam a violência como parte da política, quase que de forma inerente. Nessa realidade, o recorte de raça e sexualidade também é preciso ser considerado. Mulheres negras e mulheres trans vão sofrer mais violência, como resultado de um processo de dupla opressão.
A partir de uma análise, Malu Gatto entende que “essas questões comportamentais, o que a literatura fala é que a violência política de gênero, é mais uma forma que os homens políticos têm de tentar resistir à mudança do status quo”. A reprodução de comportamentos sexistas estaria relacionado a uma reprodução dos valores patriarcais valorizados social e culturalmente, sobretudo dentro de um ambiente político, historicamente masculino.
Representatividade
Com isso, a representatividade de mulheres na política se faz necessária. “Ao trazer mais mulheres na política, a gente também refaz a forma de como essa política, tanto no seu aspecto físico, quanto institucional, é feita”, explica Malu. A presença de mulheres no executivo e legislativo é o que vai colocar as pautas femininas em primeiro plano. “Porque se as nossas pautas hoje não são prioritárias, dentro desses espaços, a nossa ocupação desses espaços vai fazer com que, naturalmente, a gente consiga progredir e ter mais políticas voltadas para mulheres”, defende Duda.
A presença de mulheres nos espaços políticos é que vai pautar questões vivenciadas por elas. “A gente tem muito o que contribuir. A gente consegue falar sobre problemas de violência, de falta de espaço, de desigualdades econômicas de gênero muito fortes. E que a gente vivencia isso, então a gente consegue falar”, acredita Duda. Ela fala da importância de ocupar esse lugar e fazer dele também feito por e para mulheres. A presença de mulheres, principalmente mulheres jovens, como Duda e Maíra, muda a imagem que se tem dos espaços institucionais e passa a incentivar mais mulheres a buscarem a política como espaço possível e de transformação.
Malu fala do poder simbólico da representação das mulheres em lugares mais visíveis: “A maior visibilidade das mulheres na política também serve para incentivar outras mulheres a entrarem para a política. Isso transforma a forma como as pessoas, no eleitorado, percebem a política”. Esse papel de representação é ainda mais importante nas eleições municipais, em que a maioria das carreiras políticas se iniciam. “As municipais, elas são muito importantes quando a gente fala de apresentação feminina, porque ela é a porta de entrada para muitas pessoas. Então é onde as pessoas tendem a ter as suas primeiras experiências”, conta Malu. Além disso, o cargo de vereador é o de mais fácil entrada, já que requer um menor número de votos em uma área mais concentrada, servindo de uma porta importante para mulheres na política.
Para Maíra, pensar políticas de cotas e a questão eleitoral é importante, mas não só. Ao discutir a maior representatividade de mulheres é preciso, primeiro, pensá-las “enquanto sujeitas que estão submetidas a um sistema de exploração que é coletivo”. Para isso, fortalecer movimentos sociais, coletivos, e não apenas candidaturas de poucas mulheres. “Eu acho que isso é um mandato, ele precisa estar muito atento para essas formas de organização das mulheres que não só na política partidária e institucional”, defende Maíra. Para ela, fortalecer coletivos, movimentos e outras organizações é o primeiro passo para a participação política de mulheres.
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