Amizades Femininas
- Marcela Elis
- 3 de out. de 2024
- 7 min de leitura

How I love being a woman!: a cena de "Anne with an e" que virou trend no Tiktok e inspirou o texto /
Foto: reprodução internet
Dolly Alderton é escritora e redatora da parte de relacionamentos no jornal inglês The Times. Em 2022, ela lançou um livro de memórias chamado “Nearly Everything I Know About Love”, que foi traduzido para o português como “Tudo que eu sei sobre o amor”. Dentro das inúmeras reflexões do livro ao longo de suas 384 páginas, uma em especial caiu nas graças da maioria das usuárias do TikTok. “Aproximadamente tudo que eu sei sobre o amor, eu aprendi com minhas amizades de longa data com outras mulheres.”
Não seja por isso, a amizade feminina e suas maravilhas se tornaram um tópico cada vez mais recorrente. E me parece justo que seja. Somente quem já foi uma mulher chorando bêbada num bar sabe o quanto outras amigas são necessárias. Eu mesma, nestas ocasiões que são muito recorrentes em minha vida, já tive minhas lágrimas enxugadas, afastadas por meio piadas, e até mesmo assopradas. Já houve quem chorou comigo, se preocupou com minha maquiagem, fez comentários maldosos dirigidos a homens, mas nunca teve uma vez sequer em que as lágrimas foram reprimidas. A mágica das amizades femininas está em ter alguém que em sua grande maioria enfrenta problemas como os seus.
Na natureza, as fêmeas dos macacos bonobos extinguiram a agressão sexual em seus bandos. Elas soltam um grito especial quando um macho é agressivo, o que faz com que as outras fêmeas venham ao seu resgate. Leoas podem atacar o rei da alcateia caso ele seja uma ameaça à proteção de seu território e de seus filhotes. E até mesmo animais mais pacíficos, como as vacas, possuem melhores amigas (e seus níveis de cortisol aumentam quando estão próximas). Eu me pergunto se elas também se reúnem em rodas para reclamar do comportamento machista de outros macacos. Se leoas tem uma necessidade irracional da companhia de suas amigas quando precisam urinar. E se as vacas sentem falta umas das outras quando estão afastadas.
As amizades femininas humanas, no entanto, não são um tema restrito ao agora. Eu não consigo imaginar livros como “Orgulho e Preconceito” sem Elizabeth e Jane, ou “Mulherzinhas” como uma irmã March a menos. Até mesmo “Anne de Green Gables” seria um pesadelo se Anne não tivesse Diana. Não é à toa que a amizade destas últimas ganhou mais desenvolvimento na adaptação da Netflix, que rendeu mais uma trend viral no TikTok. “How I love being a woman!”, diz uma das personagens. E por mais que o mundo seja um lugar terrível para mulheres, eu acho essa uma frase muito verdadeira.

Jo, Amy, Beth e Meg: as irmãs mais amadas da literatura mesmo depois de mais de um século do original "Mulherzinhas"/ Foto: reprodução internet
No primeiro ano do Ensino Médio, uma professora de sociologia disse que não conseguiria imaginar como seria sua vida se ela não fosse mulher. Se não fosse imposto a ela um estereótipo de gênero emotivo, o que traz a liberdade de deitar no colo de suas amigas e receber cafunés. Neste ponto, as amizades femininas são algo incrível até para os homens. Talvez seja por isso que homens gays e mulheres tenham uma relação de amizade de longa data, já que ambos são colocados num lugar completamente afastado da masculinidade tóxica e virilizada.
Mas é um fato que as amizades entre mulheres, em detrimento de toda a atenção dada a suas relações amorosas com homens, são uma nova sensação. Ninguém se interessa se Rachel e Ross vão ou não ficar juntos, ao invés disso, as espectadoras comentam entre suas amigas quem é Rachel, quem é Monica e quem é Phoebe. Em “Belo Mundo Onde Está Você”, a coisa que é provavelmente mais estável na vida das protagonistas é a amizade que elas têm entre si. E não é preciso ir muito a fundo na internet para achar pelo menos um comentário (que provavelmente foi feito por mim) sobre como “Mamma Mia!” é um filme feito para mulheres e a amizade entre mãe e filha rouba a cena dos três pretendentes de Donna.
Em muitos contextos, um filho próximo a mãe é visto como um perdedor. Ele é um homem, afinal, e para ele as mulheres têm um papel de serventia. Mas, para as mulheres, a amizade de sua mãe é quase como uma conquista. Muito se fala de momentos de feminilidade entre a mestre e a aprendiz, e é lindo o modo como, conforme envelhecemos, esses papéis parecem trocar de lugar. Para Bonnie Burstow, as complicações deste tipo de relação se dão porque “Frequentemente, pai e filha desprezam a mãe (mulher) juntos. Eles trocam olhares significativos quando ela perde algum ponto. Eles concordam que ela não é inteligente como eles e não consegue raciocinar como eles. Este conluio não salva a filha do destino da mãe.”
Ao contrário de muitos homens, eu afirmo com muita felicidade que minha mãe é uma das minhas melhores amigas. Não é algo difícil, embora seja algo que nem toda menina pode ter, o que me torna muito grata. Mas requer paciência, é a primeira vez dela sendo uma mulher também, e a ideia de que mães sabem de tudo é uma calúnia. Crescer admirando uma mulher que a admira de volta torna seu olhar para outras mulheres algo completamente diferente.
Crescer nos anos 2000, por outro lado, tornou a vida de qualquer mulher uma grande neurose. Até hoje não entendo como exatamente a Sharpay se tornou a grande vilã em High School Musical. O que há de errado em ser uma garota que gosta de rosa e tem um crush no capitão do time de basquete? Ninguém lidaria bem com o fato de um bando de pessoas invadirem sua peça e roubarem seu papel dos sonhos sem ao menos terem ensaiado. A construção da garota ideal foi o que muitas vezes afastou as mulheres uma das outras. Ser diferente das outras garotas se torna um tédio quando se torna capaz de admirar outras garotas. Outras garotas são lindas, talentosas, espirituosas, ambiciosas, carinhosas. Outras garotas conquistam coisas inimagináveis. Eu adoraria ser como qualquer uma das garotas ao meu redor.

Já dizia Phoebe Buffay: "namorados e namoradas vem e vão mas isso [a amizade], é para sempre" /
Foto: Reprodução Internet
Me lembro que no Ensino Médio, quando tinha mais vivacidade dado os meus 14 anos, era mais tagarela do que já sou. Quase não parei na sala de aula durante os primeiros dias, tinha uma necessidade patológica de conhecer tudo e todos. Com uma semana eu já tinha mais amigos do que tive na vida inteira, mas esqueci de fazer a maldita primeira redação de filosofia. Minha amiga Deborah, no entanto, escreveu três páginas maravilhosas de redação, o que fez com que eu me sentisse péssima. Dois anos depois, enquanto assistíamos um filme, Deborah contou que carregava um grande peso. Ela sentia que todos, sobretudo seus pais, a comparavam a mim por ser uma pessoa extrovertida e ter uma boa relação com quase todo mundo. Por um momento, eu me senti lisonjeada de saber que era o alvo de comparação da garota que eu almejava ser. Foi nesse dia, no entanto, que eu notei que apesar de todos os esforços, nem eu e nem ela seríamos mulheres perfeitas. Estavamos fadadas a uma comparação eterna.
O grande diferencial das amizades entre mulheres e as amizades entre homens é que mulheres sempre foram colocadas num lugar de total rivalidade e comparação. É claro, todos sofrem com as pressões de determinado padrão estético e comportamental, mas ser mulher torna esta pressão sua razão de viver. Ser mulher é performar e agradar, e, diferentemente dos homens, a beleza e o talento de outras garotas são sim capazes de anular os seus. É incrível ver a valorização da amizade entre mulheres em contrapartida a isso. Sobretudo entre mulheres pretas, as eternas solitárias que encontraram umas nas outras as redes de apoio que nunca tiveram.
Phoebe Waller Bridges roteiriza o que eu acredito ser o motivo da maior conexão entre todas as mulheres, algo que é muito mais complexo do que o termo redundante de sororidade: "Mulheres nascem com a dor incorporada. É nosso destino físico: dores menstruais, seios doloridos, parto, sabe. Carregamos isso dentro de nós ao longo de nossas vidas, os homens não. Eles têm que procurar por isso, inventam todos esses deuses e demônios e coisas só para poderem se sentir culpados, o que é algo que fazemos muito bem por conta própria. E então eles criam guerras para poderem sentir coisas e se tocarem, e quando não há guerras, podem jogar rúgbi. Nós temos tudo isso acontecendo aqui dentro."
É o famoso sentimento de não estar no fundo do poço sozinho. E quando se é uma garota, você nasce destinada ao fundo do poço. Uma vez fui a uma festa com cinco amigos próximos, e eles acharam que seria super engraçado me deixar a sós no meio do mato com um garoto que eu não conhecia direito. E eu não acho que tenham tido más intenções, porque ser uma garota é o que torna presente certos instintos de sobrevivência. Mas eu chorei um final de semana inteiro por causa desse fato, e só melhorei quando me reuni com as amigas que fazem parte do mesmo grupo e pude chorar enquanto recebia cafunés, tal qual minha professora de sociologia. “Os meninos são meio machistas, né?”, disse uma delas um tempo depois. E nós concordamos em um uníssono. E, embora fosse uma péssima situação, eu senti meu coração ser aquecido pela compreensão.
Ainda que eu viva um mundo de perigo em festas, cólicas, piadas indesejadas, e padrões inalcançáveis, ao menos tenho parceiras. E sinto muito ao patriarcado, aos macacos bonobos, e aos jogadores de rúgbi, mas eu admiro cada uma das mulheres ao meu redor porque são elas que me tornaram quem eu sou. Elas me ensinam todo dia a força que admirar e ser admirada tem no lugar da competição. Elas me ensinam sobre paciência, conhecimento, reciprocidade, segurança, conforto, apoio e mais um milhão de coisas que eu não sou capaz de listar. Então sim, aproximadamente tudo que sei sobre o amor, eu aprendi com minhas amizades de longa data com outras mulheres.
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