Economia do Cuidado: mulheres trabalham mais e recebem menos
- Manuela Menezes e Tainá Junqueira
- 4 de set. de 2024
- 9 min de leitura

Charge de Lute: mulher cansada com filho e trabalhos enquanto homem lê jornal
sobre a desigualdade de gênero no mundo do trabalho - Reprodução/ Internet
Acordar. São 4h. Passar o café. Arrumar o lanche das crianças. Lembrar de comprar as frutas da semana. A roupa não está passada. Não deu tempo da maquiagem. Correr para pegar o ônibus. Deixar as crianças na escola. 8h15. Mais uma bronca do chefe. Lembrar de sorrir. Esqueci de escrever o bilhete para a professora. Lembrar de pagar a conta. 12h. A comida está cara. Não deu tempo de fazer a marmita no domingo. 16h. Ônibus lotado. Ainda preciso pendurar a roupa no varal. 19h. Finalmente em casa. Como foi a aula das crianças? E o trabalho, amor? Só mais uma… Acordar. Já são 4h.
“Eu falo sempre isso, que eu estou cansada. Que eu não tenho esse tempo para o meu descanso. Eu preciso de um dia só para mim. E eu ainda não consegui tirar esse tempo, porque é muito corrido”, desabafa Michele Barbosa, mãe, dona de casa e empregada doméstica de 38 anos. Ela é apenas uma dos 92% de brasileiras que realizam tarefas domésticas, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2022 (Pnad). As mulheres têm sido historicamente socializadas para o trabalho invisível de cuidar. Por também ocuparem a esfera pública, hoje elas enfrentam a chamada dupla jornada, tornando o esgotamento mental inevitável. Apesar da cobrança por cuidado recair sobre todas as mulheres, as diferenças de classe e de raça acirram a questão de gênero.
Mulheres ganham menos e trabalham mais. É o que estuda a vencedora do Nobel de Economia de 2023, Claudia Goldin. Para a terceira mulher premiada, a disparidade de salário e oportunidades entre homens e mulheres se baseia na visão de que a criação dos filhos é uma tarefa do mundo feminino. “Imagina o quanto é difícil para as mulheres no mercado de trabalho que engravidam e, muitas vezes, são demitidas. Muitas vezes os homens são vistos como funcionários mais interessantes”, explica Tatiane Leal, professora de Teorias Feministas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Atividades de cuidado são vistas como gestos de afeto. Seriam, assim, tidas como responsabilidades inerentes às mulheres, e não reconhecidas como trabalho. “Se você é mulher, você é obrigada a estar sempre disponível para o outro”, explica Carla Antloga, psicóloga e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB). No entanto, o cuidado é necessário para manter os indivíduos produtivos economicamente, o que o torna valoroso e com enorme poder monetário. Essa é a Economia do Cuidado, o esquema em que mulheres desempenham esse trabalho invisível (e interminável). Isso inclui a manutenção da casa e a criação dos filhos, uma tarefa que não é reconhecida, nem valorizada. E esse problema não é de hoje.

Grafite no muro: “Isso que chamam de amor é trabalho não pago” - Foto: Reprodução/ Internet
Panorama histórico
Historicamente, as mulheres foram socializadas para o papel de cuidadora. “Nosso corpo é um corpo operário. Ele está a serviço do cuidado e da reprodução em termos sociais desde que a gente nasce”, analisa Carla. A professora Tatiane Leal atesta que um discurso científico é utilizado para legitimar a exploração do trabalho da mulher. “Se coloca no corpo feminino, que gesta e amamenta, quase que uma propensão natural para o cuidado.” Leal ainda acrescenta: “Essa visão é desmontada antropologicamente, vendo as diferentes sociedades e momentos históricos. Não é natural, é uma determinada maneira de ver o corpo”.
Para além da vida doméstica, as mulheres também atuam na esfera pública. Mas, contrariando o senso comum, a economista Claudia Goldin prova que a atuação feminina no mundo público não é recente. Em sua pesquisa, ela demonstra que esse processo não se deu de forma ascendente, e muito menos de maneira linear. A partir do gráfico produzido pela universidade The Royal Swedish Academy of Sciences, com base nos estudos da vencedora do Nobel, é possível visualizar uma evolução no formato de “U”.

Gráfico em "U" mostra a evolução de mulheres casadas no mercado de trabalho na história
— Foto: Reprodução/Johan Jarnestad
No final do século XVIII, a maioria das mulheres casadas trabalhavam ativamente em atividades agrícolas. Com a industrialização, ao longo do século XIX, elas passaram a ocupar mais fortemente o espaço privado. Apenas com a chegada do século seguinte, com maior acesso à educação e a métodos contraceptivos, é que as mulheres voltaram a ocupar o mercado de trabalho. Porém, a maior inserção no mundo público não significou a redistribuição das responsabilidades domésticas, o que configurou a dupla jornada. “Tudo que tinha antes permanece do tradicional e se acrescenta todas as demandas de uma sociedade contemporânea neolibeal”, comenta Tatiane.
“Isso reflete toda uma estrutura social que divide o mundo em público e privado.” A professora da UFRJ explica que questões como economia, política, ciências e esportes estariam relacionadas ao mundo dos homens. Esse seria o âmbito da razão. Enquanto o privado, do lar, da maternidade e do casamento, estaria associado às mulheres. Esse espaço doméstico e feminino seria o mundo das emoções. “Não é só o estabelecimento de uma diferença, mas de uma hierarquia. Então o público vai ser superior ao privado”, complementa Leal. Assim, pode-se entender a razão por trás da invisibilização e a desvalorização do trabalho privado.
Economia do cuidado
As mulheres são responsáveis por 75% do trabalho de cuidado não remunerado. “A própria economia depende que tenha mulheres mantendo essa estrutura. Um trabalho invisível, mas que sem ele não existiria tudo que a gente chama de trabalho produtivo”, conta a acadêmica. A atividade doméstica não é considerada tarefa produtiva, e assim, não é remunerada. No entanto, representa 13% do PIB mundial, já que o trabalho produtivo precisa delas para se manter. Esse trabalho gera 10,8 trilhões de dólares à economia do mundo e em reais chega a 50 trilhões – valor três vezes maior que o setor de tecnologia global, por exemplo – segundo dados da Oxfam Brasil de 2020.
“Limpar, cozinhar, cuidar de filhos e dos idosos. De um familiar que adoece. A gente olha os hospitais, as prisões, espaços que demandam cuidado, e são as mulheres que estão ali.” Tatiane também reforça que “mesmo que as mulheres escolham não ter filhos, provavelmente essas atividades de cuidado vão recair sobre elas.” Ainda de acordo com o estudo Tempo de Cuidar da Oxfam Brasil, mulheres e meninas estão na base da pirâmide econômica, principalmente as que pertencem a grupos marginalizados. São elas que dedicam em torno de 12,5 bilhões de horas diárias ao cuidado, recebendo baixa ou nenhuma remuneração pelo serviço.

Relação de horas trabalhadas e remuneradas entre homens e mulheres - Gráfico: ONG Think Olga
Um dos exemplos trazidos na pesquisa é de que uma pessoa gasta cerca de 4 anos de sua vida lavando, estendendo e dobrando roupas. É o tempo de cursar grande parte da sonhada faculdade de medicina da Michele: “Na realidade, nem tempo para mim eu tenho. Eu dedico a minha família, aos afazeres da casa”. Ainda de acordo com a Pnad, mulheres gastam em média 21,3 horas semanais em afazeres domésticos, contra 11,7 horas dos homens.
Além da sobrecarga de trabalho, que une a esfera pública e privada, as mulheres ainda enfrentam dificuldade na folha de pagamento. Segundo dados do IBGE de 2022, elas recebem em média 78% do salário de homens, apesar de ocuparem o mesmo cargo. Outro desafio é a disparidade na licença maternidade e paternidade. Enquanto mulheres recebem 120 dias de licença, homens têm direito a apenas 5 dias a partir do nascimento de um filho. Tal diferença reforça o paradigma de que a função do cuidado dos filhos é um papel feminino. Ainda, 56% das mulheres foram demitidas ou conhecem alguém que foi desligada após tirar licença maternidade, de acordo com levantamento feito por Empregos.com.br.
Recentemente, a discussão acerca da licença paternidade reacendeu. O Supremo Tribunal Federal (STF) apontou uma omissão do Legislativo, afirmando que a lei ficou tempo demais sem ser atualizada. Ela está intocada desde a criação da Constituição de 1988. Hoje, o máximo de licença que um pai pode tirar é de 20 dias. Mas essa condição é válida apenas para servidores públicos federais ou para quem está vinculado ao programa Empresa Cidadã. A proposta é estender o benefício para diminuir as desigualdades de gênero no mercado de trabalho e estimular o envolvimento dos pais com os filhos. A Comissão de Direitos Humanos do Senado aprovou o projeto que aumenta a licença paternidade para até 75 dias, mas a decisão final ainda depende de outras etapas do Legislativo.
Interseccionalidade
“Não é possível falar de gênero sem outros marcadores.” A acadêmica Tatiane Leal ainda discorre sobre a interseccionalidade, em que questões como raça e classe aprofundam as relações de gênero na sociedade. A ideia de servidão, por exemplo, é ainda mais latente quando se fala de mulheres negras. “Essa posição de estar a serviço, no Brasil, carrega uma história relacionada à escravidão.” Tatiane ainda adiciona: “As mulheres brancas ainda conseguem falar ‘A minha vida não vai se resumir a isso, eu vou buscar trabalho’, e vai caber a ela delegar o trabalho de casa a outra mulher, geralmente uma mulher negra, periférica”. No Brasil, a figura da empregada doméstica resume essa dinâmica.
“Como eu já havia terminado os estudos, mas não fiz nenhum curso, falei ‘Ah, então vou ser diarista.” Michele compartilha sua trajetória profissional como empregada doméstica: “Meu ex-marido passou a deixar faltar dentro de casa, para mim e até para nossa filha. Foi quando me vi obrigada a trabalhar.” De acordo com a Pnad de 2022, 5,8 milhões de pessoas se ocupavam de trabalho doméstico remunerado, sendo 92% mulheres e 61,5% mulheres negras. Essa é a categoria que mais emprega mulheres no Brasil, principalmente negras com baixa escolaridade. Além disso, as trabalhadoras domésticas são a maior força de trabalho de cuidado brasileira.
Tatiane ainda levanta reflexões sobre a legislação e a precarização do trabalho das domésticas no país. “Como resolver esse estigma cultural da herança da escravidão que impede a valorização desse trabalho? O racismo, a misoginia, o classicismo que perpassam essa relação com as empregadas domésticas?” A professora arremata, afirmando que esse preconceito está em tudo, até na própria arquitetura. “Quando se pensa no quartinho de empregada, elevador de serviço. É para morar alguém no trabalho?”, questiona Tatiane.
Pandemia e exaustão
A pandemia de covid 19 evidenciou a disparidade no tempo dedicado ao trabalho doméstico. No isolamento social, com núcleos familiares inteiros dentro de casa, ficou nítida a sobrecarga de trabalho das mulheres que não tiveram as responsabilidades divididas. “Estavam homens e mulheres em casa. Ainda sim, quem ficava mais responsável por aula online e trabalhinho das crianças eram as mulheres”, pontua Leal. Após a pandemia, 45% das mulheres foram diagnosticadas com algum transtorno mental. Segundo a pesquisa Esgotadas: empobrecimento, a sobrecarga de cuidado e o sofrimento psíquico das mulheres, entre os transtornos mais frequentes estão a ansiedade, a síndrome de burnout e a depressão.
O esgotamento mental, físico e cognitivo das mulheres, no entanto, não se originou na pandemia. As exigências da vida contemporânea e neoliberal têm adoecido mulheres há décadas. As mulheres estão exaustas. “Sobrecarrega uma máquina, ela vai pifar. Sobrecarrega uma pessoa, ela vai adoecer”, explica Carla Antloga. As demandas no trabalho, a sobrecarga no cuidado e nos afazeres domésticos, a dupla jornada e a pressão estética contribuem para esse adoecimento. “É uma pressão muito grande de alcançar a melhor performance em todas as esferas. É uma vida que não cabe em 24 horas”, avalia Tatiane.
“Não é só ter quem cuida de quem cuida, é que essa pessoa que está cuidando não deveria fazer isso a ponto de chegar a uma situação de exaustão”, conta Carla. A cada 10 pessoas diagnosticadas com depressão ou ansiedade, 7 são mulheres, ainda de acordo com a pesquisa. Carla explica, contudo, que o problema não é o trabalho de cuidar. “O problema são três: a superexploração do trabalho da mulher, a gente não ser remunerada por isso e o fato de só a gente fazer isso”. O cuidado é invisibilizado por não ser considerado produtivo, nem lucrativo. Mas essa é apenas uma forma de ver esse trabalho. Para Carla, “o produto do trabalho do cuidado é visível, é o bem estar, é a manutenção da sociedade”. O que está em questão é a divisão de trabalho por gênero.
Políticas públicas e ações coletivas
As soluções apontadas tanto por Tatiane quanto Carla são coletivas, enfrentando a superexploração das mulheres como problema estrutural. "São questões políticas que estão envolvidas. Nós temos que tomar cuidado, porque, senão, responsabilizamos a mulher pelo próprio adoecimento", explicou Antloga. Para a psicóloga, estratégias individuais de enfrentamento ao esgotamento mental são possíveis apenas para uma pequena parcela de mulheres. A maioria não conta com uma rede de apoio e com a possibilidade de terceirização dos serviços.
Licença parentalidade, com afastamento igual para homens e mulheres, e acesso a creches com horários que respeitem o expediente dos pais são as principais medidas apontadas para amenizar a demanda de cuidado. “Não tem como falar de estratégias individuais. A mulher está envolvida num universo de exploração, de contradições, de cinismo e de perversidade que vai explorar o trabalho dela. Então, tudo tem que ser enfrentado com políticas públicas e com ações coletivas”, completa Carla.
Excelente tema para lançar o site! Parabens pela reportagem e muito sucesso para vocês nessa caminhada!