O tapa que mascara um sistema
- Manuela Menezes
- 22 de out. de 2024
- 5 min de leitura
Muito antes da violência doméstica, especialistas apontam para as vulnerabilidades econômica e emocional a que mulheres são culturalmente submetidas

No Brasil, 30% das mulheres já sofreram com algum tipo de violência doméstica / Foto: Reprodução
Discussões acaloradas, acusações e ciúmes. Xingamentos, acessos de raiva, agressões físicas. Arrependimento, declarações de amor e reconciliação. Essas são as três fases de um ciclo que causa um redemoinho de sentimentos na mulher que sofre violência doméstica. A psicóloga americana Lenore Walker identifica esse padrão cíclico de comportamento entre agressores e mulheres, demonstrando que a violência doméstica não começa com o tapa. Para especialistas, a mulher já é socializada a uma vida de violências muito antes do início de um relacionamento abusivo.
Para a psicóloga e pesquisadora em Trabalho Feminino pela Universidade de Brasília (UnB), Carla Antloga, os ingredientes que levam a uma situação de violência doméstica se manifestam durante toda a vida feminina: “Do ponto de vista das pesquisas, a mulher já nasce em situações de violência social”. Ela explica que há um processo histórico em que mulheres são socializadas a serem subordinadas a figuras masculinas. A pesquisadora conta que “a violência contra a mulher existe, autorizada por códigos e leis de conduta, desde quase dois mil anos antes de Cristo”. Dessa forma, quanto mais a mulher é culturalmente educada, “cada vez menos ela tem condição de enfrentamento”, ou seja, “não é uma questão de aceitar a violência”.
“Muitas mulheres não olham o documento que vão assinar, porque essa seria uma prova de amor” - Cristiane Oliveira, advogada
Nesse sentido, qualquer uma pode sofrer violência doméstica. “A condição é ser mulher e ter um parceiro íntimo”, afirma a pesquisadora. É o que avalia também a advogada de direitos das mulheres Cristiane Oliveira. “O fato de ser mulher traz consigo vários condicionamentos”, comenta. Cristiane trabalha com muitas clientes que se encontram em situações abusivas e precisam se separar. “Infelizmente, elas buscam orientação jurídica quando já sofreram a violência, ao invés de buscar essa ajuda quando os primeiros sinais aparecem.” Para a advogada, essa demora muito se deve à crença de que o homem irá melhorar. “Elas tentam resolver as coisas sozinhas. É cultural: sentem vergonha de dizer que sofrem violência, porque se sentem responsáveis, acreditando não terem sido espertas o suficiente.”
Vulnerabilidade econômica e emocional
Carla Antloga lembra que “é muito mais fácil sofrer violência em uma relação íntima do que fora de uma”. A pesquisadora também aponta que marcadores sociais como classe econômica e raça funcionam como “agravantes”, mas que nenhuma mulher está imune à violência. “Juízas, promotoras e delegadas podem ser vítimas. Não depende do conhecimento que a mulher tem acerca do que é violência. Depende do homem, e se fala muito pouco sobre isso.”
A pesquisadora explica que as hipóteses principais sobre a maior dependência de mulheres em relações abusivas estão ligadas à questão de classe: “A dependência financeira de mulheres negras, pela situação de racismo no nosso país, tende a ser maior”. No Brasil, 30% das mulheres já sofreram com algum tipo de violência doméstica ou familiar. Dentre elas, 76% sofreram agressão física. Os dados são da Pesquisa Nacional de Violência Contra a Mulher de 2023, realizada pelo DataSenado em parceria com o Observatório da Mulher Contra a Violência (OMV). Esse índice ainda varia de acordo com a renda: dentre as vítimas que recebem mais de seis salários mínimos, 64% declararam ter sofrido violência física, contra 79% das que têm como renda até dois salários mínimos.
Cristiane Oliveira explica que a condição econômica é um dos fatores que mais vulnerabilizam a mulher: “Elas acabam sendo levadas para um lugar de dependência e, quando vão se separar, se dão conta de como foram manipuladas”. A advogada fala sobre uma questão cultural que não incentiva mulheres a se organizarem financeiramente. “Se preocupar com o regime de bens as coloca em um lugar de interesseira - quando um homem faz isso, ele é diligente, organizado e maduro”, aponta. “Tenho muitos casos de mulheres que quando vão se casar ou assinar declarações de união estável não olham o documento, porque essa seria uma prova de amor. E depois que está assinado, às vezes não é possível resolver.”
“Existe uma construção social que coloca a mulher como mãe desses homens”- Cristiane Oliveira, advogada
Ainda de acordo com a pesquisa do DataSenado, do total de entrevistadas, 62% não teriam renda individual suficiente para manter a si e a dependentes. Além disso, 34% das mulheres que disseram sofrer com violência doméstica dependiam economicamente da pessoa que as agrediu. “Há também a vulnerabilidade emocional, em que a mulher fica responsável pela manutenção da relação”, complementa Cristiane. Para a advogada, essa conjunção de vulnerabilidades acaba colocando a mulher em um lugar de “vítima perfeita”.
A questão emocional aumenta a dependência de mulheres a uma relação, mesmo que abusiva. “Violência doméstica não é só agressão física. Muitas vezes ela começa com o abandono emocional do parceiro, e pode nunca evoluir para além disso.” Carla Antloga avalia que a negligência é “corrosiva para a mulher”, que é educada para o afeto e para o amar. “Esse tipo de desnutrição psicológica pode fazer com que ela definhe.” A pesquisadora define que a situação de abandono acontece quando o homem cobra a parceira por cuidado, físico e emocional, mas não desempenha seu papel nessa troca. “O curioso é que nos grupos de amizades masculinas eles são leais, estão sempre disponíveis. Mas para as mulheres, não.” Cristiane Oliveira arremata: “Existe uma construção social que coloca a mulher como mãe desses homens, que ela deve educar, cuidar e não pode abandonar”.
Estigma social
Carla comenta sobre a dificuldade de sair de uma situação de violência: “Existe a narrativa de que a esposa salva o casamento, que o relacionamento dura o tanto quanto ela quer”. Além disso, a estigmatização social revitimiza essa mulher. “As que enfrentam essa situação não recebem apoio da sociedade. Mesmo com leis e delegacias, o suporte para uma mulher que sofre violência doméstica é muito, muito pequeno.” Inúmeras mães, inclusive, suportam a relação violenta por considerarem que é a melhor forma de proteger seus filhos. “Muitas vezes ela pensa no formato da família margarina no Brasil, acreditando que o homem vai mudar.” Carla adiciona, dizendo que “às vezes, a própria família condena a mulher que resolve sair dessa situação”.
“A mulher é revitimizada em quase 100% dos casos" - Carla Antloga, pesquisadora
As consequências psicológicas de se crescer em um lar violento podem impactar o desenvolvimento dos filhos do casal. Um estudo da Universidade Federal do Ceará, realizado em conjunto com o Instituto Maria da Penha em 2017, sugere que crianças que presenciaram episódios de violência doméstica têm maior propensão a enfrentar situações semelhantes na vida adulta. Para muitas mulheres, o contato com a violência doméstica começa ainda na infância, quando presenciam a mãe sendo agredida. Essa é a chamada transmissão intergeracional da violência. “Os impactos psicológicos para crianças são os piores, mas é importante que os pais, homens, entendam a violência que eles cometem”, aponta Carla.
“É preciso começar a falar dos agressores, porque se está acontecendo violência é porque alguém está agredindo”, argumenta a pesquisadora. “Se fala muito sobre as mulheres que aguentam. Mas as mulheres não aguentam, elas morrem, afinal, não é mesmo?” Carla ainda fala sobre sua experiência de vinte anos de pesquisa nas temáticas da autonomia feminina e da violência contra a mulher: “São vários casos marcantes, eu não poderia dizer um, mas o mais tocante é ver como o Estado é ausente, desorganizado”.
Apesar dos avanços, Carla Antloga sublinha o despreparo de instituições e profissionais que lidam com as mulheres: “A mulher é revitimizada em quase 100% dos casos.” Além das delegacias de atendimento à mulher, a psicóloga lembra que as denúncias podem ser feitas no Ministério Público e em promotorias. “Os programas não são integrados e não existe uma rede que efetivamente promova a educação do homem e a proteção da mulher”, critica. No que diz respeito aos direitos, Cristiane defende a naturalização de se tirar dúvidas sobre seus processos legais: “A única forma de resistir a isso é buscar orientação jurídica prévia como quem vai ao médico ou vai fazer a unha”.
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