Por que odiamos coisas de menina?
- Andressa Gomes
- 11 de set. de 2024
- 6 min de leitura
As origens por trás do desprezo ao feminino

Taylor Swift é uma das cantoras que mais fatura na última década, mas é alvo de críticas pela suposta futilidade de seu trabalho. Foto: reprodução/Getty Images
O Futebol é tido como uma paixão, como uma parte da identidade dos homens. Para ele, são dedicadas tatuagens, grandes gastos financeiros e a própria integridade física dos torcedores. Isso porque os episódios de violência nos estádios são cada vez mais frequentes, com cenas de homens quebrando cadeiras, destruindo banheiros e cantando músicas de provocação. Mesmo assim, nenhuma punição é aplicada. Enquanto isso, fãs da cantora pop Taylor Swift também levam a música como uma paixão, e no show cantam a plenos pulmões hits da artista. Mas essas mesmas fãs alegam terem recebido calmantes de tarja preta durante o show no Estádio Nilton Santos, no Rio de Janeiro, em novembro de 2023. O motivo? Para alguns profissionais da saúde presentes no estádio, as fãs estavam histéricas e desequilibradas.
Você não é muito velha para gostar dessas coisas?
São esses e outros comentários que muitas mulheres recebem ao declararem que gostam de determinada banda pop, ou então que passam o tempo livre assistindo a comédias românticas. É o caso de Juliana Ferreira, influencer de 34 anos que se diz army. O termo é utilizado para se referir aos fãs da banda de k-pop BTS. “Sempre sou alvo de zoações quando digo que estou aprendendo coreano para conseguir entender melhor as músicas da banda, ou então o que os integrantes falam nas entrevistas”, afirma Juliana. A influencer revela que já foi muito criticada por gostar do gênero musical k-pop, mas que, hoje em dia, não se sente mais tão abalada pelos comentários: “A vida é muito curta para deixarmos de curtir o que amamos”.
O caso de Juliana não é o único. Muitas mulheres sofrem preconceito por terem gostos considerados muitos femininos e, portanto, fúteis. “Toda vez que alguém me pergunta quais são os meus artistas favoritos, sinto o julgamento no mesmo instante em que digo Taylor Swift, Olivia Rodrigo e Ariana Grande", revela Isabelle Peixoto. A estudante de Jornalismo de 21 anos sente que perde a credibilidade ao reafirmar os próprios interesses, e acrescenta: “Parece que me classificam como uma mulher instável e fútil por simplesmente gostar desse tipo de música”.


BTS conquistou o mundo com ritmos dançantes Olivia Rodrigo é a nova promessa do pop
Foto: reprodução internet Foto: reprodução internet
Existe algum sentido por trás desse preconceito?
Mesmo que números evidenciem o grande sucesso de cantores pop e “filmes de menina”, com recordes de bilheteria e turnês altamente lucrativas, a desvalorização pela entrega de conteúdo para um público predominantemente feminino ainda é uma prática comum. A cientista social e professora Thaiana Rodrigues aponta que tudo relacionado ao feminino é tido como inferior, e esse padrão se repete há séculos. “O resquício do patriarcado nos coloca nesse lugar de sermos sempre questionadas e não legitimadas historicamente”, explica.
Ainda sobre isso, a psicóloga Priscila Sanches afirma que, para entender por que os interesses femininos são estigmatizados na sociedade, é preciso buscar por um plano de fundo histórico, onde a mulher era considerada fútil e histérica ainda no início das civilizações. “Desde a Grécia Antiga, a mulher já era vista como um ser de natureza inconstante, imprevisível e volúvel”, explica. A psicóloga expõe que essa relação da histeria com o feminino esteve presente em todas as épocas. Na Idade Média, através da associação entre bruxaria e histeria, e no séc. XIX com as mulheres adoecendo mentalmente pela melancolia. Priscila acrescenta: “Tudo isso era resumido a essa ideia de uma natureza feminina defeituosa de alguma forma”.

Priscila Sanches é psicóloga clínica com perspectiva de gênero, e trabalha com uma abordagem de psicologia feminista. Ela expõe que o termo “histeria” vem do grego “histeros”, que significa útero. Portanto, a histeria esteve diretamente relacionada a uma natureza feminina que a medicina, composta principalmente por homens, acreditava existir. “Temos tudo isso como um plano de fundo histórico, que até hoje está presente na nossa cultura e em nosso senso comum”, afirma.
A psicóloga conclui que, como esse pensamento ainda se mantém na sociedade, “as pessoas olham para os hobbies das mulheres como interesses bobos e histéricos”. Priscila acrescenta comentando sobre a disparidade de tratamento entre homens e mulheres, assim como foi visto no show da Taylor Swift no Rio de Janeiro: “No futebol, os homens podem expressar raiva, descontentamento, mas se as meninas e mulheres tiverem comportamentos semelhantes, serão julgadas como desequilibradas”.
São hobbies ou futilidades?
Os hobbies voltados para homens costumam ser mais valorizados e entendidos como uma paixão ou um interesse. É o caso das partidas de futebol, que carregam milhares de homens aos estádios quase todos os dias do ano. “Eles podem ter esses hobbies, isso é válido para os homens”, explica a psicóloga. “A história do videogame também, para adultos, é validada. Eles podem continuar jogando videogame não só na infância, bem como na vida adulta”, acrescenta Priscila, ao afirmar que alguns interesses masculinos não perdem a validade quando os homens saem da juventude.
"Eles podem ter hobbies, isso é válido para os homens"
Priscila Sanches
“O masculino historicamente é associado ao forte, ao viril e ao potente, e o feminino ao frágil, sensível e superficial”, expõe Thaiana. A professora estuda a educação nas perspectivas de desigualdade de gênero. Ela explica que a masculinidade tóxica, estruturada pelo patriarcado, colabora para a persistência da relação da futilidade ao feminino, e coopera na potencialização dos costumes masculinos e da misoginia. “A frase ‘homem não chora’ e os filmes de super-heróis reforçam esses estereótipos, e contribuem para um comportamento violento dos homens.”
Por isso, interesses predominantemente femininos, como maquiagem, moda e bandas pop, são vistos como fúteis e vazios. Para muitas mulheres, essa questão não é um problema. Mas para uma parcela delas, esse preconceito é capaz de afetar a autoestima e a forma como elas se veem na sociedade. A influencer Juliana, que diz gostar de pop coreano, afirma que esse julgamento começa desde a adolescência: “Quando somos mais novas, acabamos sofrendo muitos julgamentos, o que gera traumas e gatilhos quando envelhecemos”.
Priscila explica que esse preconceito surge da projeção das inseguranças da sociedade sobre os interesses ditos femininos, mas não se limita a isso. “O patriarcado massacra a autonomia das mulheres, rechaça aquilo que é feminino, inclusive os hobbies e interesses, para que elas não aprendam a se posicionar”, conclui. A psicóloga afirma que a prática de diminuir gostos femininos faz com que as mulheres não desenvolvam autoconfiança e, portanto, não ocupem lugares de poder que são majoritariamente masculinos. “Mulheres inseguras são mulheres silenciadas, e isso faz muito sentido dentro dessa estrutura.”
"Mulheres inseguras são mulheres silenciadas"
Priscila Sanches
Thaiana Rodrigues lamenta que as atitudes de virilidade esperadas pela sociedade façam com que o público masculino não procure ajuda para lidar com as próprias emoções. “A falta de consciência torna a reprodução algo comum, e faz com que muitos não queiram ou não busquem se repensar”, afirma a professora. Sobre esse assunto, a psicóloga Priscila Sanches explica que homens buscam menos a psicoterapia por conta de uma questão social: “Falar sobre si é abrir as feridas, falar sobre traumas, e isso é muito assustador e até impensável para muitos homens”.
Priscila conclui que a persistência do machismo está muito atrelada ao fato dos homens não disporem da liberdade de mostrar as próprias inseguranças e fraquezas. “Eles são socializados a se entenderem como seres onipotentes, que não podem e não devem mostrar a sua vulnerabilidade”, explica. A psicóloga acrescenta: “Homens adoecem na agressividade, porque não foram ensinados a se entender como pessoas que podem buscar ajuda”. Ela afirma que esse tipo de atitude é capaz de dominar o público masculino, o que colabora para o comportamento violento e misógino.
Podemos superar
“Acredito muito no coletivo como sistema de mudança.” É o que afirma Thaiana sobre as ações que poderiam ser tomadas para diminuir a disparidade de tratamento e percepção entre os interesses masculinos e femininos. A cientista social afirma que um panorama coletivo de não tolerar alguns modelos masculinos ocasiona a possibilidade de mudanças ocorrerem, e acrescenta: “Espaços de conversas e reflexões fazem com que as pessoas saiam do automático e passem a refletir as próprias atitudes”.

A música "The Man" ironiza comportamentos que são aceitos quando realizados por homens, mas criticados quando feitos por mulheres. Foto: Casey Flanigan/imageSPACE/MediaPunch/AP
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